Gênesis | Como mudamos

José havia sido promovido a governador do Egito e a fome já havia atingido toda a terra. Ele havia feito estoque de trigo e outros povos iam até o Egito para conseguir comida, inclusive sua própria família (Gênesis 42.2).

Quando seus irmãos foram comprar alimento, seu pai, Jacó, não deixou que levassem Benjamim, irmão mais novo de José. Este era a última lembrança que lhe sobrava de sua esposa, Raquel, pois ela havia morrido e José “também”.

Então, os outros irmãos de José, aqueles mesmos que o venderam como escravo, tiveram que ir até ele para que seu povo não morresse de fome, sem saber que seria o irmão, dado como morto, que estaria à frente das vendas.

Quando chegaram, José os reconheceu, mas eles não. E fingiu que não sabia quem eram, fazendo perguntas de forma ríspida e acusatória. Naquele momento ele lembrou até do sonho que havia tido na casa de seu pai (Gênesis 42.7-8).

Muito tempo havia se passado e muitas coisas haviam acontecido desde sua saída traumática de casa. Foram muitas situações de humilhação e crises, que devem tê-lo deixado com muitas dúvidas sobre a razão de tudo aquilo.

Realmente deve ter sido muito sufocante o período de escravidão daquele rapaz bonito, rico, jovem e parte de um povo escolhido por Deus. Creio que foram dias e noites intermináveis de um silêncio que arranhava a alma.

Devem ter sido momentos em que sua pele parecia repuxar de tanto desconforto, como se fosse uma roupa apertada e incômoda que não servia mais. Os pensamentos deviam ser seus piores inimigos e juízes.

A dor de não estar mais na segurança de sua casa e da sua família eram agravadas pelo fato dos seus próprios irmãos terem feito tudo aquilo. E ainda era impossível gritar por socorro, pois seu pai não estaria por perto para ouvir.

Ele olhava para todos os lados e não via saída de volta para seu pai, para casa. Mas talvez ele tivesse a beleza do pôr do sol, depois de um dia de trabalho pesado, que só lembrava o sofrimento que chegaria com a noite fria.

Tudo que aquele rapaz havia passado o transformara em outra pessoa, que nem sequer lhe dava o crédito de ser reconhecido pelos seus próprios irmãos. Era outro “alguém” que estava ali diante deles, naquele momento.

Quantas coisas que acontecem na nossa vida, que mudam o nosso aspecto, nos tornamos mais velhos, mais frágeis, mais fortes, mudamos nossa linguagem e aprendemos coisas que nunca pensamos em um dia saber, ver e crer.

Somos colocados em lugares novos que não reconhecemos a nós mesmos e não entendemos como chegamos ali. Até que uma faísca de lembrança nos mostra que não somos os mesmos, que as pessoas não nos conhecem mais.

Essas faíscas acendem o fogaréu de sonhos e emoções, de fatos que nem sequer pensamos que seríamos capazes de suportar, mas nos achamos um pouco melhores e em uma versão mais aprimorada de nós mesmos.

Toda a história parece estar sendo contada de novo e as sensações retornam como se houvesse uma forma branda de revivermos aquilo que, em algum momento, nos desfigurava, mas na verdade estava nos moldando.

As pessoas olham e desconhecem, como se não soubessem mais quem está ali na frente delas, mas na verdade temos muito para mostrar, ensinar e compartilhar, o que deixa nossas cicatrizes ainda mais expostas e vivas.

Elas ainda são sensíveis, mas não tem mais a força da destruição, pois apenas expressam o quanto somos fortes e capazes de superar o insuperável. Até parece que houve um planejamento prévio das nossas experiências.

Naquele reencontro, o fato de não ser reconhecido por seus irmãos, talvez fosse até “agradável” para José, pois mostrava que o menino tolo, que havia sido traído por eles, não estava mais ali e não tinha mais medo de enfrenta-los.

Pelo contrário, ele mesmo iria precisar reconhecer quem aquelas pessoas haviam se tornado, pondo à prova seus valores e honestidade. Foi então que ele percebeu que havia uma esperança de arrependimento (Gênesis 42.21).

José chorou escondido e foi mais fundo naquela história que lhe torturou durante tantas noites. Saía dos seus olhos uma revelação de que era maravilhoso o que ele estava vivendo. A cura havia começado (Gênesis 42.24).

Naquele momento, o reencontro começava a dar sentido às suas lutas, mesmo que as pessoas mais íntimas de nossa vida nos olhem de forma superficial, ainda encontramos em nós mesmos o poder da nossa história.

Algumas cicatrizes ficam expostas no corpo, mas a maioria delas está na alma, invisíveis aos olhos descuidados e insensíveis. Mas elas estão lá, como um semblante de que estamos vivos e com mais tolerância e compreensão.

A vida nos proporciona reencontros que muitas vezes nem queremos enfrentar, mas que são capazes de dar um fôlego extra ou nos acrescentar um pulmão, pois nos sentimos mais leves, dispostos para seguir e prontos para voar.

Essas são como chances que tentamos evitar e arrumamos muitas desculpas para não criar oportunidades, mas, quando acontecem, perguntamos porque não fizemos aquilo antes. O medo é derretido em um doce sabor de superação.

Quando não somos mais reconhecidos, significa que estamos além de quem éramos, pois somos como nos permitimos ser, através da dor, das perdas, e das lutas externas e internas. Somos mais que nossas memórias, somos reais.

Gn.42.8 - Frase

As roupas, a maquiagem e a máscara de “governador” não permitem que as pessoas mais íntimas nos enxerguem. E ainda corremos para chorar num canto de parede, às escondidas, para não sermos surpreendidos como frágeis.

Achamos que o tempo nos desfigurou, mas estamos na verdade mais maduros e cheios de sabedorias que precisam ser transmitidas, multiplicadas e principalmente compartilhadas com tranquilidade, simplicidade e humildade.

As rugas nos embelezam, mas preferimos esconder as linhas que são os caminhos percorridos por nossas lágrimas e suor. Se os significados dessas marcas fossem comunicados, talvez víssemos nossos filhos mais felizes.

Por dentro, os ossos ficam quebradiços, os órgãos se tornam mais fracos e os dentes se vão. Mas os pensamentos podem e devem exibir a riqueza e o brilho das mudanças que fomos protagonistas, coadjuvantes ou expectadores.

Se não somos mais reconhecidos, temos mais calos nos pés de tanto pisar na terra rachada dos solos desérticos, mas precisamos achar forças para estampar, nos nossos olhos, o brilho do oásis que encontramos no caminho.

Tateamos na cegueira da incompreensão e usamos aparelhos para ouvir melhor aqueles que um dia foram agradáveis. Depois de tanto ver e ouvir coisas que nos machucaram, os olhos e os ouvidos parecem que começam a falhar.

A boca murcha com as fervorosas acusações a respeito de quem mais amamos e inclusive a respeito de nós mesmos. A força da língua excede o sabor do paladar e enche-se de entulhos de reclamações, discórdias e julgamentos.

As mãos que deveriam acalmar, são as primeiras a dar os sinais de envelhecimento, mostrando o quanto deixamos e enxugar as lágrimas dos nossos queridos e, com elas, hidratar o nosso tato com real longevidade.

Muitas são as mágoas que grudam no coração humano e acobertam toda a luz que é capaz de sair dele. E, através do perdão, somos capazes de nos dar um presente que ninguém mais consegue, além do próprio Deus.

Quando perdoamos, honramos o fato de termos a sua imagem e semelhança, nos tornamos mais parecidos com o nosso criador. Ele ensinou isso de inúmeras maneiras e concretizou na pessoa de Jesus, que nos orienta a fazermos.

Nunca é fácil, mas é preciso coragem para aceitar que é necessário, pois a vida nos apresenta muitas fugas e distrações do perdão genuíno. Porém, quando acontece, em seus diferentes níveis, vemos a sua força em nós mesmos.