Jó | Palavras proibidas

Jó estava vivendo o luto dos seus filhos e ficou doente, cheio de úlceras, que lhe levavam a raspar as feridas com um caco. Sua mulher, ao ver aquela cena, questionou sua integridade e disse para abandonar sua fé e morrer (Jó.2.9).

Ele respondeu, dizendo que não fazia sentido o que ela estava dizendo, que ela estaria sendo tola de colocar aquela situação de forma tão negativa. Disse mais que era conformado com o bem, quanto com o mal que ensina.

Talvez ninguém lembre, mas sua mulher também estava em luto. Tudo que ele perdera, ela também compartilhava, ainda mais seus filhos. Em um momento de profunda penúria como aquele deveria ter sido de consolo e apoio mútuo.

Porém, ela o conhecia o suficiente para ataca-lo nos pilares da sua existência, que eram a integridade, a fé e a sua própria vida. Tirou dele qualquer possibilidade de valor que ele ainda pudesse significar naquele resto de família.

Essa é uma prova de que, não importa a similaridade da perda e do vazio, cada pessoa terá sua dor em lugares específicos e reagirá de forma pessoal. Enquanto um se lamenta, o outro ataca, enquanto um foge, o outro enfrenta.

Como é difícil ser recriminado por alguém de sua intima confiança. Ainda mais em um momento de dor, aparece quem mais deveria te abraçar e dar conforto e arrebenta com qualquer faísca de sanidade que ainda possa existir.

Existem palavras que deveriam ser proibidas de serem ditas porque machucam demais. E tem certas bocas que conseguem, não sei onde, o poder de destruir resquícios de força dentro de nós, causando dor em cima de dor.

Se não estamos no topo da montanha não existe uma brisa de agrado que console a sensação da perda. E quando toda nossa doença é estampada diante nós com palavras de crítica, não existe tom que amenize o que foi dito.

E nem sempre a pessoa sabe que machucaria tanto, mas solta o que mais consome qualquer resquício de vitalidade que haja durante o sofrimento. É terrível ter que ouvir o que não esperávamos de quem não se podia ouvir aquilo.

O respeito à dor de alguém é uma coisa tão complicada para algumas pessoas. E palavras ditas sem um proposito muito claro podem ser totalmente desestruturadas pelas emoções que estão afundadas no pranto.

Tento imaginar a situação que devia estar aquele homem, tendo que ouvir tamanha insanidade enquanto ele raspava a própria pele cheia de feridas e chorava a falta dos seus filhos. Devia ser enlouquecedor não ter apoio da mulher.

De qualquer forma, naquele momento, talvez o mais fácil fosse culpar a pessoa mais íntima pelo que se estava sentindo. E aquela replicação de dor, em forma de palavras, se tornou uma agressão a todos, inclusive ela mesma.

Nesse tipo de situação, fica difícil ter um raciocínio claro, mas o apontamento de culpados não costuma ajudar em nada. Pelo contrário, atrapalha bastante o processo de cura, a capacidade de união e a vontade de seguir.

Apontar Jó e seu relacionamento com Deus como causa de toda aquela angústia e ainda desejar, de forma explicita, a morte do marido, não devia estar ajudando em nada para que o casal enfrentasse a situação juntos.

Jó respondeu de forma clara e precisa, deixando sua dor de lado e ainda se propondo a ensinar que coisas ruins acontecem. Mesmo sofrendo, ele sabia que somos nós quem decidimos manter ou não os valores que nos sustentam.

Ele explicou que não abandonaria sua fé por causa das circunstâncias, pois esta estaria fincada na pessoa de Deus e não no que poderia ter sido sua responsabilidade, nem se aquilo era um momento agradável ou não.

Independentemente do absurdo que estava ouvindo, ele deixou bem claro que o bem e o mal está disponível para todos e que não mudaria suas crenças por causa das perdas, pois ninguém estaria isento delas.

A resposta de Jó nos ensina as medidas de tudo que foi extraordinariamente elaborado em nosso ser e que podem estar arraigados de forma passageira, mas que podem ser parte das juntas que nos movimentam: amor, fé e esperança.

Ele tinha certeza de quem era e o que estava ouvindo era tolice de alguém que também estava em um momento de dor. Então resolveu simplesmente repreender tamanha imaturidade e lembrou o que seria a vida real.

Talvez seja querer demais que o casal fosse tão cúmplice que, em uma situação extrema daquelas, cada um tivesse a liberdade de expressar como se sentia e a condição humana de consolar um ao outro com compartilhamento.

Se fosse assim, ficaria simples demais dizer o que eles poderiam ter feito e evitar se colocar no lugar de ambos. A vida não é tão previsível, ao ponto de nos dar o direito de julgar alguém por dizer bobagens, em forma de revolta.

Quem nunca sentiu a vontade de sacudir toda a culpa em cima de uma pessoa que ama, nunca sentiu uma dor tão lancinante ao ponto de perturbar as estruturas que nos sustentam ou, pelo menos, pensamos que o fazem.

Jó sabia o que estava se passando com sua mulher, pois sua situação era muito parecida. Ele foi muito forte para não revidar da mesma forma do ataque, pois somente terminou algo que havia sido iniciado de forma maldosa.

Sua resposta foi curta e simples, ao ponto de eliminar qualquer continuidade ou de piora de um conflito desnecessário, baseado no sofrimento que ambos estavam passando. Ele deu fim no início de uma guerra sem sentido.

Jo.2.9 - Tentando ver o todo

O conselho daquela mulher parecia algo, de fato, digno de uma resposta tão absurda quanto. Porém, nem sempre conseguimos nos colocar no lugar de alguém que está sofrendo, ao ponto de compreendermos até uma agressão.

Quando somos atacados, temos uma primeira vontade de atacar de volta. Mas quando nos empenhamos em ver por dentro de quem ataca, somos muito mais abrangentes do que qualquer palavra que nos machuque.

Uma visão madura aliada à compreensão do estado de cada pessoa nos torna menos frágeis diante das ciladas das palavras malditas. A habilidade de se dispor a sofrer e superar em conjunto é capaz de evitar coisas piores.

Se tudo que pensássemos fosse externado sem cautela o mundo entraria em guerra. Todos passam por sofrimentos que são incompreensíveis por outros e a forma como reagimos nos mostra a nossa capacidade de transcender.

É uma surpresa pra nós mesmos quando não somos cúmplices com comportamentos e palavras destrutivas. Superamos nossa própria insegurança de tentarmos ser compreendidos e respeitados a todo e qualquer custo.

O vínculo que temos com a destruição é naturalmente mais forte que a conexão, mas podemos superar esse estado padrão para sermos mais do que recebemos e nos tornarmos maiores do que as palavras que machucam.

Não precisamos emprestar nossos ouvidos para ouvir tudo, mas podemos ponderar sobre muitas coisas que são ditas. Enterrados em nós mesmos não nos ajuda a aliviar a falta de compreensão de alguém, nem a nossa própria.

Fazemos o possível para nos calar diante do poder das feridas que são abertas nos nossos tímpanos e irradiam para o coração e para a alma, mas as vezes uma curta orientação se torna mais sábia e inteligente, do que revidar.

Na verdade, as guerras já estão prontas e disponíveis pra nós, mas a paz que colaboramos para manter depende de um esforço além do natural. Ainda bem que temos o poder de mudar isso em nós mesmos, com bastante esforço.

Se formos esperar que alguém perceba e mude para nos sentirmos bem, vamos ficar tão cansados que perdemos as forças. Mas se tivermos a paciência de esperar que todos vejam as mudanças em nós, somos realmente livres.

Quando isso acontece, elas parecem que deixam de ser ditas para dar lugar aos fundamentos mais agradáveis das conversas mais difíceis. O exercício nos torna mais aptos para lidar com a dureza de algo que já foi um desconforto.