Jó | Motivos próprios

Palavras mal colocadas podem ser fatais. A Bíblia ensina que o poder da vida e da morte estão na língua e sabemos que essa é uma verdade indiscutível, pois não há quem não tenha ferido ou sido ferido por elas (Provérbios 18.21)

Bildade era um dos amigos de Jó, que estavam lá para consolá-lo. Não sei, nem posso dizer se ele já tinha feito isso antes, mas, nessa passagem, esse rapaz não mostrou muita consideração pela situação de luto.

Os filhos de Jó morreram tragicamente e Bildade colocou sua opinião de forma muito pesada e culposa. Mesmo que fosse a verdade mais “absoluta”, não se tratava mais de quem havia morrido, mas do vivo (Jó 8.4).

Saber que uma pessoa querida morreu não é fácil. Saber que foi um filho é asfixiante. Saber que foram todos é insuportável. E, ainda mais, saber que a causa da morte foi violenta, aumenta a tonalidade da tragédia.

Não seria preciso que aquele amigo tivesse filhos para saber a situação de Jó. Mas, com uma declaração de tamanho absurdo, ele não se colocou no lugar da pessoa que precisava ser consolada, com certeza.

Em nossas conversas, temos a oportunidade de construir razões em conjunto, de extrair as razões pessoais, ou de confundir totalmente as duas. Temos a oportunidade de compreender ou a missão de querer mudar.

Foi a segunda opção que aconteceu com o amigo de Jó. Ele quis mostrar a razão da morte dos seus filhos, para que ele tentasse mudar de postura diante da dor. Como se fosse possível sair de um luto através de conselhos.

O perigo, de apontar motivos de problemas, em situações que já são bastante problemáticas, é uma das piores abordagens que podemos assumir. Não apenas no luto, mas em qualquer situação, os motivos são pessoais.

As próprias pessoas precisam ter o direito e o dever de buscar entender as razões para escolhas ruins ou imprevistos. Se elas estão vivendo consequências de alguma destas, talvez não seja a melhor hora para sondá-las.

Quando nos dispomos a iluminar a mente de alguém com razões inesperadas, elas ficam mais deprimidas, reativas ou escorregadias. Pois não se sentem na posição de fazer a análise dos fatos, só precisam de apoio.

Em outro momento, elas vão chegar às suas próprias conclusões, seja com a ajuda de alguém ou não. O que precisa ser visto aqui é a falta de tato desse amigo, por soltar seus achados e achismos em ocasião tão inoportuna.

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Se o foco da nossa missão estiver em mudar os pensamentos das pessoas, vamos nos frustrar, juntamente com elas. Em todo relacionamento, a principal fonte de mudança está na compreensão, pois altera nossa própria visão.

Quando ouvimos palavras de desespero, que emanam uma poluição, ficamos expostos aos seus efeitos nocivos, pois perduram em nosso pensamento. E tal desespero pode estar encoberto pela ignorância das palavras adequadas.

Estas podem, de fato, intoxicar qualquer pessoa, se forem expostas no momento errado. Podem retirar o tempero de situações saborosas, como também podem deixar mais amargas, as situações que já estejam assim.

Elas podem ferir, como também podem curar. Palavras de acolhimento estão disponíveis para todos que se dispõem a ajudar. E não adianta esbanjar de todas as sabedorias do mundo, quando outra coisa é dita para culpar.

Se no meio de toda preocupação e suporte, forem ditas pequenas frases de repreensão, estas últimas acabam soando com mais força do que as demais. Uma palavra que fere pode impedir o tratamento de todas as outras.

A conversa espontânea é muito importante, mas possui dessas armadilhas. Então, cabe a cada pessoa se expor de forma autêntica e correr o risco de se machucar, ou fugir das situações que lhe diminuem ainda mais.

Jó preferiu encarar e seguir com uma conversa que possuíram muitas nuances corrosivas, mesmo não sabendo aonde aquilo poderia lhe levar, ele se deu o direito de continuar no meio dos discursos dos seus amigos.

Vivendo uma situação delicada, ele não se deteve de ouvir, mesmo que nem tudo pudesse ser aproveitado de forma positiva. Ele deixou o espaço aberto para que as pessoas de sua intimidade lhe tocassem da forma que sabiam.

E, infelizmente, ele teve que ouvir que seus filhos eram culpados pela própria morte. Se isso era verdade, não importava, pois, a vida já estava bem difícil para ter que ouvir julgamentos direcionados a quem não podia se defender.

São asperezas que podem ser ou não sutis, mas que interferem no raciocínio e nas emoções. Abalam qualquer estrutura, ainda mais as que estão prestes a ruir. Injetam poder de destruição e não conseguem construir nada.

Passamos dias, noites e muito tempo pensando nessas fontes de dúvidas e de tormento. Ficamos congelados em reflexões infindáveis a respeito do que está errado em nós mesmos. São marretadas na nossa cabeça, que tiram a paz.

Jo.8.4 - Ouvi

Ouvi o que não queria, o que não precisava, o que doía em meu interior. Sacudi o pó de minhas sandálias e fui em frente, mas o tormento voltou a me perseguir. Até que, outra vez, lancei fora todo o juízo alheio.

Ouvi mais e mais. Repeti tudo de novo e me senti imundo de tanta sujeira que era vomitada em minha face. Lavei-me e não podia aguentar o cheiro fétido de tanta tolice que me era jogada com força e falta de piedade.

Ouvi e não prestei mais atenção. Outra mentira que acreditei por muito tempo, pois aquilo se manifestava de formas totalmente inesperadas. Pensei que não me acertavam mais, só que eu continuei reagindo a elas, sem perceber.

Ouvi quando estava mais seguro e me senti menos perturbado, mas quando a insegurança me alcançava, eu relembrava como se fosse naquele momento. Voltei a ficar seguro de novo e voltei a ficar inseguro também. Tudo igual.

Ouvi e percebi que eu mesmo dava o valor para o que era dito. Pura verdade, mas nem sempre acertamos nos valores das coisas, então, quando eu errava, me via entupido de palavras malditas me atormentando sem parar.

Ouvi coisas novas, que eu nunca tinha prestado atenção em mim mesmo. Ouvi e tentei mudar parte delas, quando percebi que eu estava querendo agradar quem mais me machucava. Aqueles ataques não pareciam ter fim.

Ouvi e fui obrigado a ouvir mais. Dessa vez, eu estava tendo que socorrer quem tanto me feria, enaltecendo meus piores defeitos. Nem isso me fazia sentir melhor, pois eu não sabia mais como fazer aquilo parar.

Ouvi e vou continuar ouvindo. De forma visível e invisível, as palavras continuam vindo em minha direção. Então, encontrei uma forma de me defender, fazendo o que eu estava esperando, ouvindo quando eu deveria ser ouvido.

Ouvi, mas dessa vez eu percebi que as fontes daquelas palavras estavam também cheias de dor. O que eu estava sentindo não era somente a rispidez da incompreensão, mas o compartilhar de um sofrimento.

Ouvi e sei que vou ter que ouvir de novo. Em algumas situações, eu passei a ver um pedido de socorro, ao invés de apenas insensatez. E, nem sempre eu consigo, mas tento dar aquilo que quero e não recebo.

Jo.8.4 - Frase