Não tem como ser mais sincero do que isso. A entonação poética de Jó é realmente algo impressionante e fornece formas variadas de expressão da alma. Nesse trecho, ele tenta expressar a cor do sentimento em seus olhos (Jó 17.7).
Ele devia estar realmente muito magoado com seus amigos e não devia estar gostando da sensação. O que quer que acontecesse, ele teria que se livrar de mais esse peso que lhe estava sendo acrescentado gratuitamente.
Falando um pouco da mágoa, podemos dizer que ela surge de várias formas, mas, é bem comum em relacionamentos desgastados. Não é algo que possui uma dimensão única, pois cresce na medida dos desapontamentos.
É como uma semente que começa a germinar e tem seus primeiros brotos, ocupando espaço na terra do nosso coração. Ela pode crescer e se tornar uma planta imensa, que gera sombras capazes de escurecerem os olhos.
Acredito que essa tenha sido a conotação usada por este homem sensível e cheio de criatividade, pois ele não via seus próprios olhos, mas sentia que sua vista parecia turva com a força de um sentimento tão venenoso.
Ele tinha todo o direito de se sentir daquela forma. Até porque, sabemos que a conversa não estava fácil e que Jó estava precisando do apoio dos amigos. Como isso não estava acontecendo, dificultava ainda mais as coisas.
O que conseguimos perceber é que Jó estava sendo mais rápido que a mágoa, lhe dando uma definição, um significado e, principalmente, uma exposição para quem era de direito. Ele falou o que sentia com clareza.
Com tamanha força de expressão, espera-se que Jó ainda não havia desistido dos seus companheiros. E era bem possível que ele continuasse dando uma oportunidade para a mudança de postura daqueles homens.
Quando a mágoa toma conta da situação, não é muito comum se perceber esse tipo de tentativa de recuperação de laços. Fica mais fácil de ver um afastamento indiferente ou um ataque mais agressivo.
Pelo contrário, Jó ainda tentava explicar como estava se sentindo, falando em primeira pessoa, mesmo havendo algumas repreensões no meio do seu discurso. A sua forma de expressão era bem autêntica.
A impressão que passa é de que ele tentaria reaver aquelas relações, de qualquer maneira, mesmo estando muito desapontado. O que, particularmente, considero um exemplo de maturidade fascinante.
Muitas vezes, ficamos magoados e não reportamos o que nos machucou para quem o fez. O que deixa as pessoas e os relacionamentos sem opções de conserto e permite que determinados assuntos fiquem mal resolvidos.
Dizer para alguém que está magoado, mesmo que a outra pessoa não entenda o motivo, é um sinal de que há vontade de manutenção da relação, ou até mesmo de restauração do que já poderia parecer perdido.
O que não funciona muito é pensar que o tempo é responsável por resolver tudo, pois não é. Muitas pendências ficam entranhadas nas histórias e se manifestam de formas bem distintas e até sem conexão com suas causas.
Além disso, essas mágoas tendem a se perpetuar de uma geração para outra, transformando problemas passados em sintomas presentes e consequências futuras. Para piorar, essas últimas não se mostram tão claramente.
Sem falar que, outras pessoas, como filhos, por exemplo, podem herdar padrões disfuncionais de relacionamento por causa do que aprenderam dentro de casa. Se tornam multiplicadores de padrões tóxicos.
Dessa forma, o tempo só agrava situações não resolvidas e confundem aqueles que não tem noção de como tudo começou. Rompimentos, separações e indiferenças do passado podem se tornar em transtornos futuros.
A mágoa é um dos fatores que causam esse efeito cascata e suas faces são inúmeras e difíceis de identificar. São invisíveis para seus precursores, então, imagina para quem apenas acabou aprendendo a replicá-la.
Ela tem a capacidade de criar significados destrutivos a respeitos dos outros e comprometer totalmente o senso de confiança de quem a possui. Ela faz questão de mostrar suas garras nos momentos mais inoportunos.
Submete pessoas e relações aos abusos mais violentos e transforma qualquer oportunidade de recomeço em uma história com prazo de validade vencido. A mágoa aborrece toda possibilidade de perdão.
Ela entroniza a falta de compreensão e limita os raciocínios brilhantes, deixando a criatividade sem visão. Desestabiliza os mais maduros, que não entendem porque possuem determinadas fraquezas de personalidade.
Engana e certifica pessoas que acham estar com a razão, pois elas deixam de perceber que a vida poderia oferecer mais do seu melhor, se houvesse a chance de uma solução para os desgastes naturais da vida.
A preocupação que Jó parecia ter, naquele momento, era a de não guardar mágoa dos seus amigos. Era como se ele estivesse lutando contra esse sentimento, pois entendia que aquilo poderia cegá-lo.
Mesmo em meio a uma chuva de informação, Jó ainda se preocupava em não permanecer magoado. É realmente impressionante como ele conseguia analisar a situação e fazer a autópsia daquelas relações.
Ele tentava, aos poucos, migrar sua esperança para sua fonte inesgotável, que era Deus. Mas não negava que estava muito desapontado com a incapacidade daqueles homens em suprir sua necessidade de amparo.
Mesmo em meio ao sofrimento, tentar repensar suas expectativas é quase impossível, mas Jó parecia não se deixar vencer. Ele estava insistindo em ser transparente e totalmente vulnerável à honestidade.
Às vezes, criamos expectativas falsas das pessoas e, infelizmente, elas não conseguem supri-las. Geralmente, o que elas mostram é o que aprenderam a fazer, logo, não têm nada diferente para oferecer.
Acontece que nos aproximamos de alguém com tais expectativas irreais, que são perigosas para nós mesmos e para as relações. As pessoas não têm culpa de não saberem atender às esperanças criadas pelo nosso mundo interior.
Em momentos assim, costumamos descartar as pessoas como se não nos servissem mais e esquecemos até dos momentos em que elas foram mais do que esperávamos. Neste ponto, a mágoa dominou as lembranças.
Cada um carrega uma história que lhe ensinou como agir e reagir. Não temos o direito de tentar mudar a verdade dos outros, nem os forçar a enxergar a realidade da nossa forma, mas podemos nos comunicar.
Foi o que acredito que Jó tentou fazer. Aparentemente, ele não queria deixar que aquele sentimento lhe acompanhasse para a cama, que já estava dura o suficiente e cheia de outros tipos de desconfortos (Efésios 4.26).
Sentimentos como esse atrapalham nosso sono, pois a mágoa sempre está acompanhada de ira e tristeza, de uma vontade incontrolável de justiça própria e de explosão descontrolada de emoções, com tendências corrosivas.
Por essas e outras razões, podemos nos responsabilizar pelos relacionamentos presentes para evitar problemas futuros. Somos hábeis o suficiente para não carregarmos algo tão pesado e nocivo como a mágoa.